Esbanjando a colheita: uma leitura mitológica do “Dia de Ação de Graças”

A tradição do “Dia de Ação de Graças” nos Estados Unidos, feriado nacional, comemorado anualmente na última quinta-feira de novembro, recupera a celebração da colheita, instituída desde que o ser humano desenvolveu habilidades agrícolas de cultivo.

Em um passado remoto, a humanidade tinha como atividades de subsistência apenas a caça e a coleta, obrigando as tribos a vagarem errantes, sem se fixar em um território. Somente a partir do desenvolvimento da agricultura, o ser humano pode se estabelecer e desenvolver a vida gregária para instituir o processo civilizatório.

Antes disso, a humanidade enfrentou a fome por ainda não ter aprendido a cultivar e estocar alimentos. No entanto, durante o período de transição para a era agrícola, também teve que aprender a lidar com a voracidade e não consumir toda a comida de uma vez, nos festejos que sucediam uma colheita abundante.

Mary Esther Harding, autora de abordagem junguiana, em seu livro, “Psychic Energy” associa esse aprendizado ao mito grego de Lityerses, o filho bastardo da riqueza com a deusa da colheita, o rei Midas e Perséfone, respectivamente.

Midas é famoso pelo dom de transformar em ouro tudo que toca. Entretanto, a identidade da mãe foi cercada por mistério, de forma que se atribuiu o nascimento a um relacionamento extraconjugal de Perséfone, a rainha do mundo subterrâneo, casada com Hades, e também associada à colheita por ser a filha da Deusa Deméter, que rege a agricultura.

O filho Lityerses, rejeitado pelo pai e pela mãe, representa esse homem primitivo que aprendeu a cultivar, mas ainda não domina seus instintos. Dono de um apetite voraz, diante da fartura, devora a colheita em um banquete e, diante da riqueza, esbanja todo o patrimônio do pai. Ele personifica a gula e a ganância, aspectos sombrios da abundância, segundo a autora citada.

Hércules, o herói que representa o desenvolvimento da consciência civilizatória na humanidade, mata Lityerses e joga o seu corpo em um rio, simbolizando o domínio dos instintos biológicos mais sombrios e primitivos, e o retorno destes ao inconsciente, representado pelo rio.

No entanto, a gula e a ganância não foram extintas na sociedade pós-industrial, há muito capaz de estocar comida. Aliás, a obesidade e o consumismo, suas versões modernas, são problemas alarmantes nos dias de hoje, gerando impactos na saúde pública e no meio ambiente. Coincidentemente, o “Dia de Ação de Graças” é seguido pela “Black Friday”, uma orgia consumista que devora os estoques do comércio, motivada por descontos, disfarces de vantagens de adquirir algo que talvez nem seja necessário.

Lityerses ainda vive?

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